
A banda de pagode tocava animadíssima “Hoje a noite é nossa/Nossa, ‘cê ‘tá maravilhosa, hein?/Você some pra me trazer desordem/Não quero saber se veio pra ficar/Já que voltou, é hora do show” e eu e a Mana dançávamos e ríamos ao mesmo tempo, um pouco por causa do nosso encontro, que é raro, outro pouco pela cena toda. Lá pelas tantas, um desconhecido cutucou meu braço, eu virei meio brava, e perguntou se eu estava bebendo.
Eu fiz que não, mas nem respondi nada. E ele insistiu, até eu decidir mudar de lugar. E eu tinha saído direto do trabalho para a festa, usava calça jogging e camiseta mais arrumadinha e só estava com parte dos braços e pescoço à mostra. E tive que mudar de lugar por causa de um sem noção insistente.
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E por que um acontecimento tão banal e particular merece ser referenciado numa crônica? Porque ele é simbólico. Se repararam, eu descrevi como estava vestida, para dimensionar que não havia um pingo de sensualidade ali. Mas eu poderia estar usando um “shortinho tipo Anitta” se bem entendesse, e mostrar mais pele e ainda assim isso não expressaria um convite por si só. Ou poderia estar em um poste da praça Dante ensaiando movimentos de pole dance em plena luz do dia e ninguém teria o direito de julgar os meus motivos. Mulheres vestindo burca sofrem violência, meninas de nove anos com uniforme da escola são estupradas.
Mas a gente precisa sempre estar se explicando, sempre tentando justificar que o decote à mostra é só uma opção, que usar fio dental ou sair sem sutiã são uma escolha pessoal – e não dizem respeito aos outros. Pensar duas vezes antes de colocar uma calça justa, um vestido mais curto, porque sempre há um julgamento por trás deles.
O contrário, no entanto, não existe. Estava andando pela Avenida Júlio de Castilhos numa dessas tardes quentes e fiquei observando um homem de uns 50 anos, pancinha saliente, com a camiseta dobrada até a metade da barriga. Sem o menor constrangimento, sem ouvir nada de ninguém. Alguém consegue imaginar a cena protagonizada por uma mulher, na via mais movimentada da cidade?
Nesse período carnavalesco, a discussão sobre a liberdade – meu corpo, minhas regras / não é não – é amplificada, mas ainda precisamos de um longo percurso para que uma mãe amamentando seja apenas uma mãe amamentando e não uma mulher com o seio à mostra.
Tenho convicção de que todo excesso esconde uma falta, então esse falso moralismo diz mais sobre quem o tem do que quem sofre seus efeitos. A antropóloga Miriam Goldenberg diz que a única solução possível é parar de se importar com a opinião alheia. Sou mais utópica: para mim, precisaríamos de respeito recíproco. Só.