Ficaria escrevendo horas a fio sobre Belchior. Foi meu companheiro de adolescência e juventude. Se forem jogados para cima, aleatoriamente, os versos das muitas de suas canções ao longo de sua carreira, dezenas deles podem ser recolhidos com o tentador propósito de resumir em uma frase ou expressão a riqueza de sua contribuição à música e à cultura nacional. Versos não faltam, dezenas deles. Mas é um risco elementar essa síntese, porque, apesar das frases cortantes, luminosas e poderosas, a obra toda de Belchior revela seu compromisso com a essência da produção cultural: a tradução do seu tempo e do seu lugar.
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Porém, no caso de Belchior, essa tradução sempre veio junto com uma tensão existencial, pessoal, particular, que deve acompanhar as almas inquietas, uma coisa a interferir na outra, em uma simbiose magistral entre lucidez e inquietação. Uma tensão existencial cortante, e não há como resistir a enfileirar alguns de seus versos soltos: "A felicidade é uma arma quente", "Sons, palavras, são navalhas", "Como é perversa a juventude de meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão", ou o estrondoso "Meu delírio é a experiência com coisas reais." Ou ainda um trecho com o qual guardo especial identidade: "Por força deste destino, um tango argentino me vai bem melhor que um blues".
Provavelmente, muitos dos que não viveram os Anos 70, e também os vertiginosos Anos 80, estarão surpresos com o tamanho da reverência e do reconhecimento que agora são devotados a Belchior, alguém que se recolheu a um autoexílio, voluntário ou circunstancial e, assim, deixou-se ficar escondido de quem veio depois. É que Belchior, se não chega a ser exatamente uma lenda, tipo Raul, é quase uma lenda, e sua morte, da maneira como foi, o recolhe quase anônimo, como um legítimo rapaz latino-americano, com dívidas e, portanto, sem dinheiro no bolso.
Da minha experiência pessoal, devo dizer que é de Belchior uma das duas canções que elegi como aquelas que mais me emocionam. São canções quase singelas e despretensiosas. A de Belchior não se inclui entre as suas mais cintilantes. O critério da escolha não é, obviamente, a perfeição formal do verso ou da melodia, ou a leitura reta da realidade, ou o clássico da música popular, mas a capacidade de arrebatamento a partir da descrição luminosa de seu tempo, ao mesmo tempo simples, quando se refere à "gente de minha rua", combinada com a vontade de viver: "Ainda sou estudante da vida que eu quero dar".
A música chama-se Tudo Outra Vez. Vou levá-la pela vida afora. E não é preciso dizer mais.