A Polícia Civil de Caxias do Sul recebe diariamente uma denúncia de crianças vítimas de agressões, maus-tratos, abusos sexuais e negligência. A média se mantém assim desde 2011. Isso significa que, enquanto tentamos compreender a morte de Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos, outras crianças são submetidas a uma rotina de ataques físicos e psicológicos.
Os abusos psicológicos como os vivenciados pelo garoto são sutis e raramente ultrapassam as portas de casa. O menino de Três Passos é caso atípico: ele foi além e pediu ajuda. O juiz da Infância e Juventude de Caxias, Leoberto Brancher não lembra de ter recebido em seu gabinete crianças com o mesmo ímpeto.
- A pergunta é: o que posso fazer quando sei de um caso assim? Acredito que a decisão da Justiça em Três Passos foi acertada. Mas quando um caso chega ao âmbito judiciário é apenas no papel, são versões escritas por terceiros. Ocorre a tragédia e saímos a procurar culpados. É um comportamento reducionista. Somos todos corresponsáveis - pondera o juiz da Infância e da Juventude de Caxias, Leoberto Brancher.
O magistrado pode ter razão. Serviços da rede de proteção são sujeitos à falhas por conta da burocracia e das dificuldades dos agentes para acompanhar agressores e vítimas. A vigilância mais eficaz é aquela que complementa. Está na escola, na vizinhança, entre os amigos e conhecidos. No caso de Bernardo, faltou a atenção diferenciada de quem estava próximo.
Em média, todos os anos, de 250 a 280 crianças sofrem maus-tratos por parte de pais ou familiares próximos. O Estado pode ouvir o pedido de socorro, abrir inquéritos e responsabilizar. Mas quase sempre é limitado e inoperante. Para profissionais da área, é frustrante não ter o retorno esperado tanto das famílias quanto do poder público. Há serviços de apoio, mas faltam vagas para receber tanta gente envolvida no ciclo da violência infantil. Contudo, a questão a ser trabalhada é a garotada que segue refém de agressores simplesmente porque uma testemunha preferiu não se intrometer por medo ou ignorância.
Das cerca de 400 denúncias que ingressam na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) de Caxias todos os anos, aproximadamente 80% indicam o menor em situação de vulnerabilidade social. Só que a necessidade mendigada muitas vezes pelos pequenos não diz respeito a comida ou bens materiais, mas ao amor.
- Quando instauramos inquéritos de abandono é muito comum as crianças relatarem sobre a falta de afeto de um dos pais ou do casal. Percebemos isso no dia a dia, principalmente em casos de pais separados. Muitos entram em uma briga judicial extensa para decidir sobre a guarda ou pensão dos filhos e esquecem que a obrigatoriedade de cuidar e dar amor é de ambos - contextualiza a titular da DPCA, delegada Suely Rech.
Sofrimento foi amenizado
O corretor de imóveis Alexandre Cicero da Silva, 40 anos, e um engajado grupo de pais conseguiu amenizar o sofrimento de um menino de nove anos. No ano passado, o menino havia sido acolhido por uma médica. Seis meses depois, o garoto foi devolvido ao Estado porque a relação não deu certo. É possível imaginar o turbilhão de emoções vividas pelo menino.
Alexandre soube da história pelo filho. Os coleguinhas da escola não paravam de comentar. Comovido, decidiu intervir.
- Ele voltou a morar no abrigo e também queriam tirar ele do colégio. Não podíamos ficar quietos. Já havia sofrido com a ruptura da mãe adotiva e agora perderia os amigos. Ele é um menino querido. Fomos até o Fórum pedir explicações, fizemos reuniões e agimos - lembra o corretor.
A organização de Alexandre e outros 18 pais convenceu a direção da escola a conceder uma bolsa de estudos ao garotinho. Parece pouco diante de uma grande perda, mas não é. O menino superou parte da revolta, tirou boas notas e percebeu que alguém, mesmo sem laços afetivos, se importou. No final do ano, o garoto foi inserido em uma Casa Lar - projeto da prefeitura que substituiu os abrigos por uma família temporária.
- Os tutores decidiram que seria melhor ele ir para outra escola, o que entendemos. Quando soubemos dessa triste notícia de Três Passos imediatamente lembrei dele. Esperamos que esteja bem agora - diz o corretor.
ONDE DENUNCIAR EM CAXIAS DO SUL
Conselho Tutelar região Sul
3901.1518 ou 3901.1519
Conselho Tutelar região Norte
3901.1517 ou 3901.1521
Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA)
3214.2014
Ouvidoria da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Disque 100
Brigada Militar
190