Aurora tem a mania de chegar no portão eletrônico e ordenar, confiante: “ábiii...” Ao que o mecanismo costuma responder, num toque de mágica, com alguma variação de segundos.
Sucedeu que, um dia, a mãe de Aurora simulou um “abre-te Sésamo” diante do portão. E apertou o controle remoto no instante em que a pequena dizia a palavra mágica, ábiii. Criou-se aí uma tradição que já dura duas semanas na vida da menina de quase três anos de idade, com naturais inclinações para lá de Bagdá da metafísica: aquário, ascendente peixes, lua em aquário. “Essa veio para confrontar tuas certezas”, sismou mestre Nivaldo.
Alertado sobre os novos poderes de Aurora, o desafio agora tem sido gerenciar os montes de botões remotos que orbitam pelos vãos do carro, vespa, bolsos e mochilas, coisa que já não é muito fácil no cotidiano de um mago de araque, equilibrando os pratos do real e do imediato. E fazer isso na sincronia do ábiii e fecha da aprendiz de bruxa.
Mas o complicado é navegar no simbolismo que o dom mágico de Aurora evoca para um virginiano outra vez em colapso mental de fim de ano, à beira do abismo das crenças. Tornei-me uma fábrica de concretudes, cujas chaminés expelem a fuligem das ilusões incineradas.
Lembro bem, em criança, o quanto acreditava nos meus poderes. Eu pilotava a miniatura de uma Lotus F1 preta, eu era o Fittipaldi – brinquedo do tempo Made in England que reencontrei dias atrás limpando o porão de casa, entre lembranças e teias de aranha. Resgatada, a Lotus está aqui sobre a escrivaninha, imóvel. Me aperto todo, mas não caibo mais dentro dela.
No espelho, meus bigodes ao estilo Nigel Mansell mostram o piloto anacrônico e melancólico que me tornei. Acreditava em uma vida longa, quando aos 17 vi o adeus nos olhos do pai. O ícone de Che na parede do quarto e a mochila de acampamento me diziam que eu transformaria o mundo; troquei biologia (sonhos de cientista) por jornalismo na faculdade (sonhos de porta-voz); esqueci os tubos de ensaio, perdi o diploma de eletricidade do Senai.
Ouvindo Raul, Queen e Nelson (Coelho de Castro), sem saber o que os ligava além da música, entrecruzei múltiplos caminhos que foram dar em quase nada, nada além de doses de liberdade e algum uísque, num pátio com muitas árvores – o que, ao chegar até aqui, não sei se significa muito ou pouco. Meus mitos caíram: ideologia, religião, relações, sonhos.
E, desmoronando neste fim de dezembro, chego diante de um portão imenso. Escuto o coração de Aurora. – Abre-te!, 2019.